21/08/2020

A Arte de engolir promessa sem se entalar. Por J. Flávio Vieira

 


J. Flávio Vieira

Médico e escritor

“Promessas e bolachas nasceram para ser quebradas”
Jonathan Swift

 

Semana passada, aconteceu, em Fortaleza, uma solenidade que uniu o nosso prefeito municipal, representantes da URCA e o Secretário Estadual de Saúde, onde foi apresentado um projeto para criação da Faculdade de Medicina de Crato, desta vez ligada diretamente à Universidade Regional do Cariri. A manchete ganhou o noticiário, com os bons auspícios de aceitação do pleito por parte de Camilo Santana. Por aqui,  a divulgação carregou consigo diferentes e díspares emoções. Com a autoestima cratense, mais baixa do que salva vidas de aquário, boa parte da população abriu sorrisos largos  e sonhou com os novos tempos propícios que virão. Uma ampliação dos nossos horizontes científicos, com melhoria da rede hospitalar, reflorescimento do atendimento ambulatorial e , na esfera econômica, um fortalecimento considerável, principalmente no setores  de serviços e de imóveis.

Outra parte dos cratenses, percebeu, imediatamente, os tempos pré-eleitorais da novidade, época em que as promessas saltam das línguas,  como peixes na piracema. Tínhamos vivido expectativas similares com o sonho de uma outra extensão da UFCA para o Crato, encaminhada pelo Deputado José Guimarães, e que deu com os burros e os éguas   n’ água. Professores da URCA, por outro lado, lembraram as deficiências estruturais  de muitos cursos já lá existentes e que poderiam, inclusive, se agravar, se o novo projeto não se fizer acompanhar de recursos novos e um olhar reanimador para as distorções antigas.

As entidades médicas, por sua vez,  posicionam-se, invariavelmente, contra a criação de novas escolas . Temos duas Faculdades, atualmente, FMJ e a da UFCA,  e nenhum Hospital Escola a lhes dar suporte.   Um pouco pensam na qualidade dos cursos e dos profissionais que dali brotarão, empunhando seus  diplomas e prontos a usá-los como navalha ou bisturi. Mas, também, marcam território, de olho numa reserva de mercado. Temos, no Brasil, em quantidade, médicos suficientes para atender à população, existem, no entanto, na distribuição deles,  realidades perversas. 60% dos profissionais estão fincados na região Sul e Sudeste e, nos estados, a maior parte estabelece-se na beira mar. Os interiores, o Nordeste e principalmente o Norte muitas vezes têm sua medicina exercida pelo Pajé, pelo Balconista da Farmácia e pelo Meizinheiro, com se vivessem no Século XIX. Pudera ! Até militares andam receitando em portas de palácios! Quando a proposta de abertura de novas faculdades se faz nas capitais, as entidades calam-se, tergiversam. O que é ótimo em alguns locais, para eles,  parece péssimo em outros. O que vale na minha casa não serve na do vizinho. 

A chegada de novos empreendimentos mexe, imediatamente, com incontáveis e múltiplos interesses econômicos e políticos. Lembro do alarido, com a implantação da nossa URCA, nos anos 80. Diante da nova realidade, crua e irretornável, os embates arrefecem e todos se unem em busca do novo caminhar.

 Não tenho dúvidas quanto à possibilidade de o Crato instalar uma Escola Médica de excelência, emparelhando-se em nível com as melhores do Nordeste. Tradição é o que não nos falta e, no Cariri, temos já um invejável arsenal de ótimos profissionais nas mais diversas especialidades médicas. Claro que os primeiros passos são sempre trêmulos e temerosos, mas precisaremos fazer os consertos e acertos com a carruagem em pleno movimento. Com a total insensibilidade do governo Federal para com a Educação e as Universidades, em particular, penso que a iniciativa estadual  surge como a mais viável, até porque temos um cratense como titular.

Partidos políticos, em plena efervescência pré-eleitoral, pulam das tamancas, denunciando o que chamam de manobra eleitoreira. Ao Zé Povinho não interessa a briga de comadres. Daqui um pouco as conveniências e conchavos os unem ou separam. Que venha a Faculdade, apesar dos pruridos de grupos que, na sua maior parte, visam apenas à saúde dos seus bolsos e às benesses dos seus apaniguados.  Cabe-nos incensar e elogiar a iniciativa por um lado e, pelo outro, cobrar , incessantemente a promessa feita. Com um olho no gato e o outro na sardinha.  É que, nos últimos tempos, temos engolido mais promessas quebradas que bolachas fraturadas e já andamos com engulhos e ânsias de vômito.  Que ao menos a Faculdade de Medicina possa minorar um pouco nossas náuseas.

Material publicado na edição desta sexta-feira 21/8/2020 da edição de número 21 do jornal Leia Sempre.