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02/10/2020

Aquele quadro carimbado. Por Alexandre Lucas

 



Alexandre Lucas

Pedagogo, presidente do Conselho Municipal de Políticas Culturais do Crato/CE, integrante do Coletivo Camaradas e da Comissão Cearense do Cultura Viva

 

Na sala tem um quadro, um papel moldurado: a representação de um rosto formado por palavras carimbadas. É  preciso chegar perto para saber o que dizem as palavras. Só depois de um tempo pude perceber o quanto aquele trabalho carrega um erro. 

 

Aquele quadro fala todas às vezes em que olho para ele, apesar da gente se manter em silêncio. Parece que o lugar dele é na sala e que será meu mesmo se desaparecer. 

 

Ele foi feito na sala, após o almoço com inúmeros carimbos na mesa, algumas almofadas, um lápis. Pensava que tinha paciência para carimbar cuidadosamente aquele papel, sem borrar e sem ultrapassar os limites das linhas, quase invisíveis.          

Comecei a carimbar. Queria vender aquele trabalho, afinal, artista também pensa em comer. No meio do caminho, que não era um poema de Drummond, apareceu outras mãos querendo continuar o trabalho, experimentar os carimbos, saber como funcionava aquilo tudo: carimbos, almofadas, papel e as mãos.       

        

Eu que não queria outras mãos naquele papel, que não custava mais que quatro pães,   somente as minhas mãos deveriam tocar aquele  papel barato, vendido em qualquer papelaria. Era um papel comum, não tinha nada de especial e os carimbos, almofadas e outros papéis estavam ali, poderia fazer mais trabalhos. Eu que queria apenas as minhas mãos naquele trabalho, gritei e gritei tão alto que pude escutar dentro da minha alma socos. 

 

Continuei o trabalho, as outras mãos nada tinham alterado do que já vinha fazendo. Deveria ter acreditado naquelas mãos, naquele momento, deixado que carimbasse todos os papéis e que tivesse enchidos de palavras a imaginação.   

 

Enquanto gritava, a sala se mantinha em silêncio, mas parece que isso era um grito maior que o meu. O quadro continua na sala, por sinal gritando e é bom que continue gritando para que eu possa lembrar que também existem outras mãos.      



Material publicado na edição desta sexta-feira, 2 de outubro de 2020 da edição  27 do jornal Leia Sempre on line.