POR MAÍRA MATHIAS
O encontro da intolerância religiosa com a direita brasileira produziu um novo marco de violência: contra as crianças e adolescentes, mas também contra o Sistema Único de Saúde. O uso político do caso da menina de dez anos que engravidou começou no governo federal, se espalhou nas redes bolsonaristas até que, enfim, se converteu em palanque para deputados estaduais e vereadores.
Tudo começa, como nota a reportagem do El País, com um vazamento – que, aliás, deveria ser investigado. No dia 8 de agosto, a criança deu entrada no Hospital Roberto Silvares, localizado na cidade onde mora, São Mateus (ES). Estuprada pelo marido de uma tia desde os seis anos, ela engravidou.
Mesmo a ultrapassada legislação brasileira lhe assegurava duplamente o direito ao aborto, por ter sido vítima de violência sexual e pelos riscos físicos e psicológicos de uma gestação indesejada na sua idade. Ao invés de ter acesso ao que lhe era de direito, a criança foi exposta. Seu caso foi parar nas redes sociais da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Damares Alves começou uma campanha para pressionar a menina de dez anos a levar a gravidez forçada adiante. Prometeu ‘ajudá-la’. Não satisfeita, a ministra enviou na quinta-feira “emissários” à cidade capixaba.
Por sua vez, a Prefeitura de São Mateus levou, sem necessidade, o caso à Justiça. Os procedimentos de interrupção decorrentes de estupro devem ser oferecidos pelos serviços de saúde, sem necessidade de a vítima apresentar boletim de ocorrência ou autorização judicial.
No sábado, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo autorizou o aborto. Mas a equipe do Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual do Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes, em Vitória, se recusou a realizar o procedimento. Justificaram que a idade gestacional não estaria amparada pela legislação que permite o procedimento no país. A menina estava com 22 semanas e quatro dias de gestação.
Os profissionais ignoraram o código penal e a norma técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, editada em 2005 pelo Ministério da Saúde – que, no entanto, foi lembrada pelo juiz Antônio Moreira Fernandes, da Vara da Infância e da Juventude –, e prevê que gestações avançadas podem ser interrompidas. A menina foi referenciada para um serviço em outro estado.
Mais uma vez, o bolsonarismo entrou em ação. Sara Giromini teve acesso ao processo, que deveria ser sigiloso, e publicou o nome da criança na internet. Nas redes sociais conservadoras, a viagem de avião a Recife foi divulgada.
No Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros da Universidade de Pernambuco, uma aglomeração se formou a partir do meio dia de ontem. Grupos evangélicos e católicos que se dizem ‘a favor da vida’, tentaram invadir o hospital, impediram a entrada de profissionais de saúde – que tiveram que ser escoltados por policiais –, vandalizaram o local e, finalmente, chamaram a menina de dez anos de “assassina”.
Tudo isso aconteceu com a liderança e apoio de vários parlamentares: os deputados estaduais Clarissa Tércio (PSC) e Joel da Harpa (PP) gravavam vídeos. Depois, se uniram a eles o deputado estadual e pastor da Assembleia de Deus Clayton Collins e a vereadora Michele Collins. O casal é do PP.
Depois de um intenso processo de revitimização (que, aliás, não se sabe quando vai acabar), a criança conseguiu ter acesso ao seu direito reprodutivo, apesar de ter visto vários outros serem desrespeitados. Infelizmente, esse tipo tão particular de barbárie civilizatória que não poupa nada nem ninguém parece ter muitas chances de se multiplicar daqui pra frente, dado o contexto de escalada autoritária e conservadora no Brasil.