J.
Flávio Vieira
Médico
e escritor
Dr. Iranildo Freire, em fim de plantão, esperava, ansioso,
a chegada do seu rendeiro. O colega,
sempre pontualíssimo em seus compromissos, naquele dia, estranhamente, não
aparecia. Mais de suas horas de atraso !
Eram tempos ainda dos bips e
orelhões a ficha, sem as facilidades de comunicação dos telefones celulares.
Finalmente, aliviado, o plantonista vê apontar, no horizonte, o fusquinha verde
limão do parceiro. Sim, naquelas eras jurássicas, os recém formados não viviam
montados em cabines duplas. Sentiam-se notáveis e cobertos de privilégios,
quando, juntando o minguado dinheirinho dos plantões, conseguiam adquirir um
fusquete velhinho e o envenenava. Muitos tinham seguido a via sacra e
evoluído do transporte no pé-2, do
aperto do ônibus de manhãzinha, muitos mesmo dos burros e cavalos. O primeiro
fusca parecia uma BMW.
O companheiro chegou meio esbaforido e pediu desculpas pela
demora. Tinha havido um contratempo. Saíra cedo de Recife para a Unidade Mista
do Cabo de Santo Agostinho, onde trabalhavam. A estrada, nos anos 70, já era
asfaltada, mas ainda não duplicada. Era julho, quando as chuvas no litoral são
mais intensas. Ele explicou que, em determinado ponto, por conta da inclemência
das águas, parte da rodovia desabara e haviam feito um desvio. Ele tomara,
cuidadosamente, o atalho indicado. Em sentido contrário, vinha um caminhão,
carregando, na carroceria, um trator de esteira. O motorista dirigia lentamente
e com precaução. O médico parou na sua mão e esperou a passagem lenta da
carreta. No meio do caminho, no entanto, havia uma poça d´água que encobria um
buraco fundo. Quando o caminhão emparelhou com ele, parado à margem da pista, a
roda traseira caiu dentro do buraco que, encoberto pela lâmina líquida, era
fundo, embora enganosamente não o parecesse. A carreta empinou para um lado e o
trator, com suas toneladas, tombou de cima do veículo. Para a sorte do doutor:
na margem oposta da estrada em que ele se encontrava parado. O colega de
Iranildo explicou que ali permanecera por mais de quinze minutos, trêmulo, sem
conseguir dirigir. No íntimo perguntava para si mesmo: um mero detalhe! E se
tivesse sido para esse lado?
Passado o plantão, tranquilizando o amigo, Dr. Iranildo
tomou a estrada de volta. Na sua cabeça, repetia-se a cena do filme narrado
pelo parceiro, minutos atrás. A vida dependia de fortuitos detalhes. O segredo
entre o ser e o não ser, entre o existir e o desaparecer, entre o acontecimento
e o vazio está escondido em pequenos, mínimos e incontroláveis pormenores. O
esqui e a avalanche; o acidente aéreo e a perda do voo; o saltador e o
paraquedas; o esbarro fortuito e a paixão; o dinossauro e o meteoro; são
binômios que dependem da invisível mão do destino para mover os cadarços da
marionete. Em todos os instantes da nossa vida, o tempo lança para o ar a
moedinha onde no verso está o existir e, no anverso, desenha-se a imagem da
impermanência. Cara ou Coroa?
Por isso mesmo, pensou Iranildo, enquanto imergia no
corredor de canaviais da BR 101, cada momento é único, último e definitivo e
deve ser degustado como o derradeiro gole da garrafa de vinho Bordeaux. Neste
exato momento, estamos parados à borda da autoestrada e nunca sabemos para qual
lado o trator vai tombar.