05/06/2020

O Deus e o Carrasco de cada Um. Por J. Flávio Vieira


J. Flávio Vieira

Médico e escritor

Em plena epidemia de Covid-19, na cidade de   Bergamo, num pico assustador da moléstia, em março último, o Padre italiano Giuseppe Berardelli viu-se na necessidade premente de precisar de um respirador. Como tem se tornado tão frequente em algumas cidades brasileiras, todos estavam ocupados com pacientes graves à beira do precipício. Alguns fiéis da vila onde era sacerdote, Casnigo, cotizaram-se e adquiriram, às pressas, o precioso e salvador equipamento para seu pároco.

Berardelli , então, observando o clima de morte iminente de vários pacientes que agonizavam, como ele, do Coronavírus,  ao seu redor, preferiu ceder o respirador para um rapaz mais novo que ele e, certamente, com mais vida pela frente e mais possibilidade de restabelecimento. Berardelli faleceu poucos dias depois, numa sombria terça-feira, no vinte e quatro de março. Ele tinha apenas setenta e dois anos e estava em plena atividade missionária. O ato extremo solidário e heroico do padre Berardelli parece tresloucado nos dias de hoje, onde os verbos só se conjugam na primeira pessoa. Mas são daqueles que nos remetem, súbito, a entender que nem tudo estar perdido, que no breu sempre existe a possibilidade de alguém acender sua fagulha.

Em Recife, um vendedor de sanduiches tinha seu humilde ponto, há mais de quarenta anos, defronte ao Colégio Salesianos. Deve ter alimentado incontáveis gerações de estudantes, com o seu famoso “Comeu-Morreu”. O vendedor tem um apelido inesquecível: “Barruada”. Quando a epidemia pipocou nas pontes e alamedas da cidade, viu-se ele sem negócio e sem fregueses e começou a faltar-lhe, após umas semanas, o mínimo para sobreviver. Vizinhos levaram o problema ao Oráculo de Delfos da atualidade: as Redes Sociais. Abriram-lhe uma conta e pediram doações.

Ele imaginou que fosse tão famoso e que tivesse tantos amigos distantes. Ontem,  Barruada gravou um vídeo agradecendo e informando que já tinha o suficiente, não precisava mais ninguém depositar. O que haviam depositado já dava para passar pelo túnel escuro. Se a coisa apertasse de novo, voltaria a avisar. O humílimo Barruada estava na contramão neste país do toma-lá-dá-cá, da fraude institucionalizada, da tramoia, da esperteza, do desamor, da reacendida banalidade do Mal.

Estes dois exemplos são poucos, eu sei, em meio a tantos outros que não vieram à tona e permaneceram no anonimato. A mão amiga que doa escondida, para que a outra não perceba o gesto desapego. Por isso, mergulhado o país em atos obscuros, genocidas, atentatórios à Democracia, totalmente distanciados dos mínimos sinais de civilidade, mesmo assim, no meio do pântano, sempre brotam os lírios.

No fundo, percebo, a Ética, embora hoje aparentemente tendo fugido dos livros de filosofia e se hospedado nos de ficção, tem relação direta com a sustentabilidade do planeta e com o ITH (Índice de Tolerância e Humanidade) da nossa civilização. Ponho-me, hoje, no lugar dos médicos mais jovens, como meus filhos, na luta contra o inimigo terrível e desconhecido, nas UTI´s mundo afora. Não bastasse o risco inerente ao vírus, ainda têm que guerrear sem que lhes forneçam as armas mínimas adequadas à batalha. Mais de cem médicos brasileiros já pereceram no front, em muitos casos, eu sei, por exposição inadequada, por serem impulsionados a assumirem riscos a que não deveriam ser expostos.

Quando pululam pacientes graves, sem respiradores suficientes, precisam, dia a dia, escolher quem sobrevive e quem será sacrificado. Os impasses éticos certamente, são terríveis. É que estas questões não se resolvem com simples decretos, resoluções e códigos. Brincar de Deus, apesar de juntar poderes encantatórios, sempre traz consigo o ônus do carrasco. Terrível o impasse: para salvar alguém, temos que decidir pela execução sumária de outro. Imaginem as situações mais terríveis e, certamente, muito reais. Dois pacientes graves e um só respirador: como ser justo, imparcial nesta situação? Como livrar-se de preconceitos entranhados na nossa alma? Um negro e um branco da mesma idade, quem escolhemos para o respirador? Um rico empresário idoso e um carroceiro jovem? Um presidiário de 18 anos e um velhinho com rosto angelical de oitenta? Dois jovens graves, com falta de ar intensa, um deles portador de Síndrome de Down, a quem daremos a oportunidade de sobreviver? Um velhinho remediado e um imigrante jovem venezuelano?

Difícil fazer uma escolha que não nos traga algum pesadelo nas noites seguintes. O médico quando se vê no espelho não sabe se o reflexo é de Dr. Jekyll ou de Mr. Hyde. Esta gangorra de situações não possui respostas fáceis. No fundo, elas são aceitáveis e até contornáveis em momentos extremos e pontuais. O grande impasse ético, na verdade, está lá na cobertura desse edifício de terrores. Compreendemos que as epidemias são quase sempre avassaladoras e imprevisíveis. A grande questão é que este problema é crônico e reiterado. Em tempos normais, todos os dias, os profissionais têm que escolher quem vai ou não ter o leito de UTI, quem pode ou não fazer os exames complementares, quem vai ter acesso ou não ao remédio, quem vai ficar na maca do corredor ou no leito do hospital. Essa seleção antinatural é a regra no dia a dia dos profissionais de saúde. Agora, com o aumento gigantesco de casos, por conta da Covid, o excremento é jogado nas aspas do ventilador e já não recende só nas paredes dos hospitais e dos necrotérios.  O remédio para essa moléstia está nos livros da Política e ela, infelizmente, está necessitando de respirador também. Precisa tomar lições com os Berardelli e Barruada.