J.
Flávio Vieira
Médico
e escritor
Em plena epidemia de Covid-19,
na cidade de Bergamo, num pico
assustador da moléstia, em março último, o Padre italiano Giuseppe Berardelli
viu-se na necessidade premente de precisar de um respirador. Como tem se tornado
tão frequente em algumas cidades brasileiras, todos estavam ocupados com
pacientes graves à beira do precipício. Alguns fiéis da vila onde era
sacerdote, Casnigo, cotizaram-se e adquiriram, às pressas, o precioso e
salvador equipamento para seu pároco.
Berardelli , então, observando
o clima de morte iminente de vários pacientes que agonizavam, como ele, do
Coronavírus, ao seu redor, preferiu
ceder o respirador para um rapaz mais novo que ele e, certamente, com mais vida
pela frente e mais possibilidade de restabelecimento. Berardelli faleceu poucos
dias depois, numa sombria terça-feira, no vinte e quatro de março. Ele tinha
apenas setenta e dois anos e estava em plena atividade missionária. O ato
extremo solidário e heroico do padre Berardelli parece tresloucado nos dias de
hoje, onde os verbos só se conjugam na primeira pessoa. Mas são daqueles que
nos remetem, súbito, a entender que nem tudo estar perdido, que no breu sempre
existe a possibilidade de alguém acender sua fagulha.
Em Recife, um vendedor de
sanduiches tinha seu humilde ponto, há mais de quarenta anos, defronte ao
Colégio Salesianos. Deve ter alimentado incontáveis gerações de estudantes, com
o seu famoso “Comeu-Morreu”. O vendedor tem um apelido inesquecível:
“Barruada”. Quando a epidemia pipocou nas pontes e alamedas da cidade, viu-se
ele sem negócio e sem fregueses e começou a faltar-lhe, após umas semanas, o
mínimo para sobreviver. Vizinhos levaram o problema ao Oráculo de Delfos da
atualidade: as Redes Sociais. Abriram-lhe uma conta e pediram doações.
Ele imaginou que fosse tão
famoso e que tivesse tantos amigos distantes. Ontem, Barruada gravou um vídeo agradecendo e
informando que já tinha o suficiente, não precisava mais ninguém depositar. O
que haviam depositado já dava para passar pelo túnel escuro. Se a coisa apertasse
de novo, voltaria a avisar. O humílimo Barruada estava na contramão neste país
do toma-lá-dá-cá, da fraude institucionalizada, da tramoia, da esperteza, do
desamor, da reacendida banalidade do Mal.
Estes dois exemplos são poucos,
eu sei, em meio a tantos outros que não vieram à tona e permaneceram no
anonimato. A mão amiga que doa escondida, para que a outra não perceba o gesto
desapego. Por isso, mergulhado o país em atos obscuros, genocidas, atentatórios
à Democracia, totalmente distanciados dos mínimos sinais de civilidade, mesmo
assim, no meio do pântano, sempre brotam os lírios.
No fundo, percebo, a Ética,
embora hoje aparentemente tendo fugido dos livros de filosofia e se hospedado
nos de ficção, tem relação direta com a sustentabilidade do planeta e com o ITH
(Índice de Tolerância e Humanidade) da nossa civilização. Ponho-me, hoje, no
lugar dos médicos mais jovens, como meus filhos, na luta contra o inimigo
terrível e desconhecido, nas UTI´s mundo afora. Não bastasse o risco inerente
ao vírus, ainda têm que guerrear sem que lhes forneçam as armas mínimas
adequadas à batalha. Mais de cem médicos brasileiros já pereceram no front, em
muitos casos, eu sei, por exposição inadequada, por serem impulsionados a
assumirem riscos a que não deveriam ser expostos.
Quando pululam pacientes
graves, sem respiradores suficientes, precisam, dia a dia, escolher quem
sobrevive e quem será sacrificado. Os impasses éticos certamente, são
terríveis. É que estas questões não se resolvem com simples decretos,
resoluções e códigos. Brincar de Deus, apesar de juntar poderes encantatórios,
sempre traz consigo o ônus do carrasco. Terrível o impasse: para salvar alguém,
temos que decidir pela execução sumária de outro. Imaginem as situações mais
terríveis e, certamente, muito reais. Dois pacientes graves e um só respirador:
como ser justo, imparcial nesta situação? Como livrar-se de preconceitos
entranhados na nossa alma? Um negro e um branco da mesma idade, quem escolhemos
para o respirador? Um rico empresário idoso e um carroceiro jovem? Um
presidiário de 18 anos e um velhinho com rosto angelical de oitenta? Dois
jovens graves, com falta de ar intensa, um deles portador de Síndrome de Down,
a quem daremos a oportunidade de sobreviver? Um velhinho remediado e um
imigrante jovem venezuelano?
Difícil fazer uma escolha que
não nos traga algum pesadelo nas noites seguintes. O médico quando se vê no
espelho não sabe se o reflexo é de Dr. Jekyll ou de Mr. Hyde. Esta gangorra de
situações não possui respostas fáceis. No fundo, elas são aceitáveis e até
contornáveis em momentos extremos e pontuais. O grande impasse ético, na
verdade, está lá na cobertura desse edifício de terrores. Compreendemos que as
epidemias são quase sempre avassaladoras e imprevisíveis. A grande questão é
que este problema é crônico e reiterado. Em tempos normais, todos os dias, os
profissionais têm que escolher quem vai ou não ter o leito de UTI, quem pode ou
não fazer os exames complementares, quem vai ter acesso ou não ao remédio, quem
vai ficar na maca do corredor ou no leito do hospital. Essa seleção antinatural
é a regra no dia a dia dos profissionais de saúde. Agora, com o aumento
gigantesco de casos, por conta da Covid, o excremento é jogado nas aspas do
ventilador e já não recende só nas paredes dos hospitais e dos
necrotérios. O remédio para essa
moléstia está nos livros da Política e ela, infelizmente, está necessitando de
respirador também. Precisa tomar lições com os Berardelli e Barruada.