Há mais de 150 anos, os homens da Irmandade dos Penitentes da Cruz de Barbalha vestem sua opa e
capuz para participar da procissão do fogaréu, realizada na Semana Santa. Sob a liderança do
decurião, marcham, com tochas nas mãos, da Igreja do Rosário até o Igreja Matriz de Santo Antônio
com outros 12 grupos dos municípios de Abaiara e Várzea Alegre, todos do Cariri.
Neste ano, porém,
esse importante rito foi suspenso pela primeira vez na história por conta da pandemia do novo
coronavírus.
A passagem do padre Ibiapina pelo Cariri e a chegada da cólera, ainda na segunda metade do século
XIX, foram importantes episódios para o surgimento dos grupos na região caririense, como narra o
aposentado Antônio Francisco de Sales, de 77 anos, um dos líderes da Irmandade de Cruz.
A historiadora Patrícia Alcântara explica que a fundação destes grupos na região tem uma relação
direta com o período epidêmico. Hoje, porém, o cenário é oposto. "Há um processo inverso por conta de uma determinação de saúde pública. Nunca aconteceu deles não saírem", enfatiza a pesquisadora.
Ela lembra, ainda, que "sempre foi muito conflituosa a relação das determinações do Estado e as
religiões".
Ruptura
"Estou com 77 anos de idade e há 67 que saio às ruas. Nunca ficamos em casa na Semana Santa.
Esse coronavírus espantou todo mundo. Quem não tem medo dessa doença?", lamenta Antônio Sales.
Embora ressentido, o aposentado diz entender a medida. "Na rua, o povo também não ia aceitar a
gente não", reconhece, ao lembrar a mudança cultural. "Antigamente se batia em epidemia com reza",
ilustra.
Durante o período de quaresma, além de "tirar os benditos", como eles chamam o ato de ir às ruas,
entoando os cânticos e pedindo esmola de casa em casa, toda sexta-feira os penitentes praticavam o
autoflagelo no cemitério, como uma forma de se purificar dos pecados individuais e coletivos.
"Neste
ano, não vai ter por causa dessa pandemia", ressente Aldênio Sousa Sales, 44, sobrinho de Antônio e
um dos integrantes do grupo.
A secretária de Saúde de Barbalha, Pollyanna Callou, enfatiza que, diante dessa crise na saúde
mundial, as práticas populares serão diferentes neste ano. Ela avalia o cancelamento prudente e
lembra que a maior parte dos integrantes destes grupos já são idosos, pertencentes ao grupo de risco
da Covid-19. "É importante que se mantenham em suas casas. Muitos já apresentam alguma
comorbidade".
Patrícia Alcântara acredita que a pandemia terá um impacto no grupo, pois, ao longo dos anos houve
várias modificações, como a própria identificação dos penitentes. "Essa determinação dá uma quebra",
acredita.
A pesquisadora Anna Christina Farias de Carvalho, doutora em Sociologia, que também pesquisou os
grupos de penitentes do Cariri, discorda. "Eles têm uma tradição centenária. Não será um dia que
implicará em quebra de tradição. Não há uma quebra da fé, da ordem. A penitência para eles é para
salvar a humanidade dos pecados, enquanto crença, enquanto rito".
(Diário do Nordeste)