“A sombra é sempre negra, nem que seja de um cisne branco.”
Pablo Neruda
Por J. Flávio Vieira
Qualquer aprendiz de cozinheiro sabe,
perfeitamente, que o sabor inconfundível de qualquer iguaria depende,
principalmente, do equilíbrio dos seus mais diversos temperos. Basta errar-se a mão no sal, no açafrão,
na pimenta, para pôr-se a perder a mais
requintada receita de lagosta ou camarão. Por outro lado, nenhum deles é de
menor importância: o que seria da mais gostosa moqueca do nobre badejo, sem o humilde
dendê ? Pus-me a pensar nisso
mesmo, hoje, ao observar o imenso caldeirão étnico brasileiro. O que fez a
delícia tupiniquim , o sabor inconfundível do povo brasileiro, único na sua
alegria, no seu despojamento, foi a mistura calculada de raças que terminaram
por mesclar-se na nossa panela: índios, brancos, negros, amarelos, judeus, árabes... O somatório desses
ingredientes , dosados milimetricamente, ao correr dos anos, é que terminou por transformar-se num prato digno dos melhores máster chefs.
Sei, dos segredos culinários, que
nenhum desses ingredientes no nosso cadinho étnico sobrepuja em importância
qualquer outro. Por outro lado, percebo que alguns podem se sobressair por
conta da sua raridade, da sua excentricidade e pelas tribulações na hora
preparo. No Brasil , tenho sempre comigo que a etnia africana carrega consigo
uma relevância ímpar, como se fosse a ameixa do nosso pudim. E as razões são
simples. Foram arrancados à força de países como Nigéria, Angola , Benin e
Moçambique, a partir do Século XVI, por
quase quatro centúrias , trazidos em
terríveis condições de insalubridade, com mortalidade que devia alcançar
próximo de 50% . Os sobreviventes, apartados de seus familiares já em
território brasileiro, foram levados, como alimárias, às galés perpétuas, à tortura, ao estupro.
Aqui chegaram, nem se sabe exatamente, em torno de quatro milhões, vendidos nas
feiras como porcos ou galinhas. Só em 1888, seríamos o último país a
libertá-los, e não por questões humanitárias, mas perfeitamente econômicas: a
mão de obra assalariada já era mais barata que a escravizada. Foram então
jogados à própria sorte, sem qualquer amparo governamental: sem indenização ou
qualquer tentativa de inclusão social. Mais
de quinhentos anos depois, a população negra, que hoje perfaz quase 60% da
população brasileira, ainda continua tateando em meio à escuridão. Dados do último censo de 2010
mostram que dos 16 milhões de brasileiros vivendo na extrema pobreza (renda de
até 70 reais mensais), 11,5 milhões são pardos ou pretos, ou seja, 72% do
total. Além disso, enquanto o analfabetismo entre os negros alcança 13,3%,
entre os brancos reduz-se a 5,3%; a expectativa de vida para os brancos
eleva-se a 73 anos, seis a mais que entre os negros; dos brasileiros brancos,
15% possuem nível universitário, enquanto, entre os negros, esse número se
reduz a apenas 4,7%; a possibilidade de ser assassinado é mais que dobro entre
os negros, 64%, que entre os brancos, 29% do total de homicídios. A Senzala
apenas transferiu-se para as favelas; o pelourinho agora tem o nome de cadeia;
o estado com suas polícias faz-se os capitães do mato da modernidade; a
escravidão ganhou tinturas de trabalho doméstico, de trabalho no campo, de
boias frias. Existe um Racismo de vigília em cada esquina, mas , o pior, é o
Racismo institucionalizado como Estado que agora faz o papel do senhor de
engenho.
Mas, o
mais impressionante de tudo, o que me leva a pensar na magnitude e dimensão
desse ingrediente Afro, na nossa formação, foi a maneira como, em meio a
tamanhas restrições e violência, os Negros conseguirão sublimar tudo e marcar
indelevelmente a cultura brasileira. Basta olhar ao derredor. Nossa Música,
nossos ritmos são marcantemente negros. Nossa Culinária tem nuances incríveis
de negritude e, o mais belo, conseguiram fazer seus pratos típicos com aqueles
ingredientes mais irrelevantes, aparentemente intragáveis, desprezados das
mesas das casas grandes. Nossa dança, nossos folguedos, nossa religiosidade,
profundamente mestiços, têm fortíssimos traços dos nossos irmãos africanos.
Alguém já disse que nesse país ninguém tem sangue azul. Todo mundo tem sangue
preto : alguns nas mãos, incontáveis nas veias. Mesmo assim, até hoje, 122 anos
depois da Lei Áurea, a Escravização é ainda uma realidade presente e
vergonhosa.
Como a Escravização
foi, por mais de 400 anos, uma política de Estado, a Libertação necessita
também tornar-se uma política pública contínua. Uma forma de minimizar um dos
pecados originais dessa Nação. O Racismo Individual é apenas uma extensão do
Racismo Estrutural. Todo brasileiro precisa entender que por mais que nossa
autoimagem pareça reluzente e dourada, nossa sombra, a silhueta étnica de todos
nós, basta olhar para o reflexo , é de um lindo e estonteante negro.
Crato,
20/11/20