25/11/2020

A árdua missão de consolidar a democracia. por Íris Tavares

 


Segue abaixo texto escrito pela historiadora Íris Tavares especial para o  Leia Sempre. O texto faz uma reflexão sobre o processo de consolidação da luta em defesa da democracia e da defesa dos direitos e da ação política das
mulheres. Está publicado na edição desta quarta-feira, 25, do Boletim Panorama Político.

Vale a pena ler e refletir:


A ÁRDUA MISSÃO DE CONSOLIDAR A DEMOCRACIA

Íris Tavares Kariri

Historiadora. Mestre em Políticas Públicas. Escritora e educadora social

 

A eleição de 2010 consagrou a participação direta da mulher na disputa eleitoral para o comando da Republica do Brasil. A vitória da ex-presidente Dilma Rousself, inevitavelmente, inaugurou um novo período político no país dos pijamas e fardões autores das mais variadas manifestações recheadas de um saudosismo de um passado não muito distante representado pelos fardados. Um exército que imprimiu a ferro e a fogo a propaganda de uma pátria madrasta das suas filhas/os cuja as ideias insurretas foram condenadas e amordaçadas. “Brasil ame-o ou deixe-o”. Jason Stanley nos faz refletir sobre o “Passado Mítico”, a sua significação no presente ao interagir com a base da identidade da nação submetida à política fascista.

Oito anos do governo Lula (2003-2010) contribuíram decisivamente para viabilizar a sucessora para um novo mandato forjado na continuidade do projeto político com forte apelo na participação popular e no diálogo com os movimentos sociais e em defesa da democracia.  

A vitória de Dilma foi de grande significação. Seu principal apoiador foi o líder e carismático ex-presidente oriundo de uma trajetória de engajamento e militância social que a partir dele se personifica com a ascensão de um nordestino, torneiro mecânico, líder sindical em defesa da classe trabalhadora.  Em seguida nessa construção ascende uma mulher, a primeira presidente em toda a história da República do Brasil. Não foi por acaso que o discurso da capacidade e da competência surgiu ancorado na retorica machista. A mulher foi severamente sabatinada. Mesmo graduada em Economia, foi secretaria de estado e ministra, todavia o que pesava contra aquela mulher era o fato de ter sido membro da resistência no período em que o Brasil estava submetido a ditadura militar. Em 2008 como Ministra da Casa Civil participou de um debate na Comissão de Anistia, onde relatou a sua escolha e o seu envolvimento na luta contra a ditadura no Brasil.  Havia uma condenação explicita entre alguns parlamentares e grande parte da sociedade que acompanhava aquele debate. ”Na ditadura uma mentira pode salvar pessoas da tortura e da morte”. No fascismo a mentira, o mito, está conectada ao ideário totalitarista que se utiliza da emoção da nostalgia para alimentar os princípios centrais dessa ideologia para promover: autoritarismo, hierarquia, pureza e luta.  

As correntes mais conservadoras ao longo dos doze anos do governo petista chegaram no limite de esgotamento de suas investidas, o arco de alianças e a base aliada que dava sustentação ao governo, presentes no Senado e na Câmara Federal, misturaram-se neoliberais e ultra conservadores entre os bochichos e insatisfações das representações de partidos políticos que se alinhavam com métodos pragmáticos, vislumbravam futuros rebentos e apostavam na complexidade do tabuleiro da micropolítica tão bem ensaiada no Brasil.      

O que é um golpe, senão a ruptura com a democracia?  O golpe praticado contra a ex-presidente Dilma pode significar, entre outras coisas, um sinal de atraso, no qual a política brasileira está submetida. Os ataques, os discursos proferidos nas manifestações golpistas acendeu uma luz no fundo do túnel. Um partido e uma mulher, por que despertariam tanto ódio?

O ódio proferido contra a deputada federal Maria do Rosário, em um “aparte” concedido ao ex-deputado federal, Jair Bolsonaro, no plenário da Câmara em 2014, repetia o insulto que já havia verbalizado e transmitido em rede nacional. “Só não te estupro porque você não merece”.

Parte da sociedade brasileira no período de 2003 a 2016 foi provocada a se incluir no processo de participação que seguia uma agenda propositiva sobre temas invisibilizados. Em destaque para esse ensaio nos reportamos aos temas relacionados aos direitos humanos, da violência contra a mulher, a questão de gênero, o racismo, a intolerância e a orientação sexual. Temas polêmicos frente ao amplo público alimentado nas raízes do conservadorismo. A Lei Maria da Penha foi a primeira legislação sobre a violência doméstica no Brasil. A campanha e os instrumentos ofertados para tirar da invisibilidade a maior chaga que sobrevive no seio das famílias, a matança, o feminicidio, das mulheres.  Veio à tona o tamanho e os números desse fenômeno.

A pergunta que não cala. De que forma a violência contra o gênero fortalece a política da ansiedade sexual? Stanley chama atenção para o fato da igualdade exercida pelas mulheres, tornar-se uma desconstrução do papel dos homens como únicos provedores de suas famílias. A violência funciona como uma castração física, emocional, psicológica e política.

“Resistência: mulheres do Ceará com Dilma” foi um movimento em defesa da presidente Dilma que teve origem no Ceará. Tratava-se de um grupo suprapartidário composto por mulheres que na sua maioria possuía militância feminista. Com forte atuação desde a campanha da reeleição, manteve-se ativo pós eleição, as mulheres avaliavam que a ira conservadora não descansaria até consolidar o golpe com a derrocada da presidente Dilma. Uma análise correta e que veio a se concretizar nos primeiros dois anos do seu mandato.

A esquerda brasileira pensava que sabia de tudo, ou quase tudo, inclusive imaginava que todo o arsenal da extrema-direita era tão previsível, quanto as teorias ensaiadas nas discussões políticas e ideológicas assinadas pelos intelectuais, elaboradores de estratégias, dirigentes e militantes. Ledo engano. Enquanto a “normalidade” engendrada no fazer político de muitas pessoas parecia seguir o ritmo inexorável do tempo, planos foram arquitetados no submundo da política, nos ambientes virtuais onde as fronteiras da ética são invadidas pelas fakenews, o império da mentira é implantado por meio das notícias falsas. Uma indústria montada para ter audiência, ganhar atenção, manipular interesses e serviços na associação de processos corruptivos de toda ordem e natureza. A eleição presidencial de 2018 foi resultado desse plano que precisou de tempo para sua elaboração e execução. O tempo ganha mais velocidade no ambiente virtual, quando a intensão é confundir o passado e o presente, a verdade e a mentira. A fonte da maldade é ilimitada. A maior parte do público consumidor das redes sociais é tão voraz quanto ingênuo. É tão aventureiro quanto amante do superficial.

O mandato tampão presidencial, pós golpe 2016 contribuiu com o vazio na política. Um vazio que foi sendo ocupado com o perfil de um candidato que mantinha os dedos em punho como uma marca de sua campanha. Declarava que a sua única filha mulher, era o resultado de um desvio que cometera, uma “fraquejada”. O ódio foi o tempero que despertou a amargura coletiva de parte da sociedade que se juntou aos impropérios, xingamentos de toda ordem contra os “comunistas”, mesmo depois de eleito a cruzada não cessou. Surgiu entre jovens apoiadores a pior versão de Sarah Winter, protagonizada por Sarah Giromine que entrou para história com a queixa de não ser aceita e reconhecida como feminista pelo movimento feminista brasileiro.

Rosana Pinheiro em “Amanhã vai ser maior” nos faz refletir sobre a vitória da extrema-direita, todavia considera que as feministas também venceram. Conseguiu surpreender com sua narrativa embasada no rigor cientifico e destaca a importância do fazer político e a participação das mulheres no poder. As mulheres lançaram uma contra campanha de grande mobilização virtual e presencial de milhares de pessoas dentro e fora do Brasil que assumiram a campanha #EleNão.

Além disso é importante destacar o blog Escreva Lola Escreva especializado em gênero e feminismo que publicou o perfil de Sarah. Um espectro de feminista-antifeminista, que usava as redes sociais para provocar e escandalizar seus seguidores com declarações emotivas e improprias sobre o direito e a razão de ser das mulheres se organizarem. Liderou um pequeno grupo de manifestantes que denominou de “300 do Brasil” que marchou encapuzado em frente à Praça dos Três Poderes declarou guerra ao legislativo e judiciário. Ameaçavam atear fogo na sede do Supremo Tribunal Federal.

O despertar da primavera feminista no Brasil tem florescido com as vozes e os corpos das mulheres em movimento e na luta. São conhecimentos e saberes que bebem a esperança no horizonte da pedagogia dialética do mestre Paulo Freire. O feminino se ampliou e fez brotar amor no terreno do medo. Germinaram sentimentos e sensações no horizonte utópico e radical da liberdade. É o Brasil das Marias, meninas, jovens, maduras e anciãs que soletraram com a mente, corpo e alma, a resistência, a solidariedade, a empatia. E os nossos direitos? Conquistamos!