04/10/2020

Um mundo se refaz a todo momento. Por Emerson Monteiro


A cena final do filme Ran, de Akira Kurosawa, genial diretor do cinema japonês, mostra dois exércitos feudais em confronto numa planície linda, de verde intenso e luzes fulgurantes. Nisso, o plano de próximo vai distanciando para o alto afastando daquela batalha derradeira dos dois clãs em luta, ficando cada vez maior o plano e menores as imagens... até desaparecer numa única visão planetária, minúscula, e sumir de tudo. Quando, certa vez, perguntado o que representaria essa conclusão do filme, Kurosawa considerou ser o que imaginava a visão de Deus quanto aos acontecimentos daqui do chão, dos movimentos de causas e condições, fluir universal das consequências que somem no vazio cósmico.

Esta diluição dos instantes se sobrepondo a novos instantes que vêm e vão, céleres quais vieram, bem significa o que denominamos realidade, sem sustentação definitiva, sem praias de respiração. Apenas um escorrer de tintas nas telas do Infinito, ensaios de um artista magistral, incansavelmente, repetitivamente. Espécie de rascunhos de sonhos que desfazem ao vento das horas mortas, as ânsias humanas gestam o firmamento e somem de junto, autores da própria função, no entanto ausências de resultados, desparecimentos, desejos e velas acesas apenas repastos feitos ao nada inevitável dos dramas.

Nesse intervalo entre dois fragmentos de tempo ali moramos todos, nutrição de eternidade que nunca ultrapassa a visão imediata, eixo central das horas em movimento no carrossel bravio das circunstâncias. Assim contemplamos o definitivo, porém almas largadas aos caprichos da mutação permanente de coisas e seres entre partos e sepulcros, fantasmas nas madrugadas anônimas dos séculos em decomposição.

Há, outrossim, lógica em tudo. Esse roteiro das descobertas face ao mistério das existências, lesmas de rochedos monumentais e oceanos indóceis, o segredo de todos os códigos representa a razão essencial de andar pela História feitos animais esquecidos de contos maravilhosos. Neste trotar de pernas no deserto da solidão, somos heróis das lendas que viveremos lá um dia nos trilhos da Esperança e da Paz. 

(no blog do Emerson Monteiro)