Foto: Nexo Jornal
Marcos
Leonel
Educador
e cidadão do mundo
Em
nome de Deus o ser humano é capaz de tudo. É capaz até mesmo de aniquilar a
essência humana para poder proclamar a necessidade suprema de humanismo. O uso
que se faz da fé para estruturar o autoritarismo divino é o que existe de mais
hediondo na sociologia das religiões. Ao longo da história das civilizações
Deus tem se revelado para poucos e muitos têm revelado deus como um poderoso
produto, multiplicador de fortunas e fermentador do pão que alimenta a
escravidão espiritual. Deus é amor. Deus é fiel. Deus é o salvador. Deus é o
caminho. Deus é uma arma letal nas mãos da fé miliciana.
O
proselitismo falacioso das pregações fundamentalistas tem como aparatos de
manipulação social dois itens fundamentais: proteção divina e salvação divina.
Com essa base metafísica a evangelização totalitária do conservadorismo se
direciona para uma alma acuada pela culpa, por uma tão grande culpa. No
entanto, mais pesa a imensa ignorância do que o fardo dos pecados. A garantia
do abrigo e da remissão dos pecados é a moeda de troca para a servidão e para a
militância religiosa. Quem pode mais do que Deus? O rebanho precisa do pastor e
o pastor precisa bem muito mais das ovelhas, pois o curral é sua fonte de
produtividade. O protocolo de burocratização das almas cativas é um
empreendedorismo paradoxal, tem meios liberais de mercado e fins espirituais
conservadores.
O
mercantilismo religioso é uma arte. O encontro da política, da tecnologia e do
fanatismo religioso tem mais poder do que o sangue de cristo, tem mais poder do
que a fissura beligerante do átomo. Essa tendência dogmática do banditismo
ecumênico tem até o dinamismo maligno de obscurecer as vertentes pregadoras que
se fundamentam na dignidade, que trabalham para a transformação do ser humano,
através do amor ao próximo e da responsabilização do próximo como sendo sua
outra face. Em todas as partes do mundo, existem partes religiosas que não
foram afetadas por essas facções terrivelmente desumanizadas e brutalmente
milicianas. Nem todas as representatividades religiosas transformaram seus
livros sagrados em livros contábeis, muito menos tiveram seus fiéis
transformados em hordas.
A
defesa da vida feita pelos grupelhos fanáticos que invadiram o hospital onde a
menina de 10 anos passava por um aborto assistido é a prova cabível da
involução do ser humano. Aliás, o bestialismo humano está presente em quase a
totalidade desse episódio macabro da história recente da escória da sociedade
brasileira, excetuando-se aqueles que estavam e estão ao lado dessa criança
estuprada em série. Nem Goebles teria o sangue de barata para transformar essa
tragédia social brasileira em ato político. Nem mesmo o mais habilidoso dos
camelôs da bíblia encontraria justificativa teológica para dar continuidade
existencial dessa tortura suprema. De fato, a perfeição divina, como é pregada,
precisa de um arcabouço teológico gigantesco para se justificar dentre o lixo
humano contemporâneo.
Quando
os discursos criminosamente organizados ocultam o estuprador e tiram de cena o
protagonismo do que de pior existe no ser humano, fomentando a sedimentação
perene do machismo, anulando categoricamente a mulher e sua independência de
ser mulher, temos certeza que o inferno foi transubstanciado de sua condição
mítica para os confins da cadeia de esgoto que habita boa parte da sociedade
brasileira. É muito diabólico evidenciar um crime de aborto, quando na verdade
o crime é de estupro. O resultado dessa propaganda política é a revelação da
natureza desumana de quem defende o projeto político em curso. Não é possível
acreditar que qualquer protesto contra essa manifestação decadente da
existência humana possa resultar em um retorno da dignidade, da cidadania, e
dos direitos humanos. O exorcismo dessa legião necessita muito mais do que
notas de repúdio.
Material publicado na edição desta sexta-feira 21/8/2020 na edição de número 21 do jornal Leias Sempre.