21/08/2020

O uso da fé como forma de estruturar o autoritarismo. Por Marcos Leonel

 

                                                         Foto: Nexo Jornal 

Marcos Leonel

Educador e cidadão do mundo

 

Em nome de Deus o ser humano é capaz de tudo. É capaz até mesmo de aniquilar a essência humana para poder proclamar a necessidade suprema de humanismo. O uso que se faz da fé para estruturar o autoritarismo divino é o que existe de mais hediondo na sociologia das religiões. Ao longo da história das civilizações Deus tem se revelado para poucos e muitos têm revelado deus como um poderoso produto, multiplicador de fortunas e fermentador do pão que alimenta a escravidão espiritual. Deus é amor. Deus é fiel. Deus é o salvador. Deus é o caminho. Deus é uma arma letal nas mãos da fé miliciana.

 

O proselitismo falacioso das pregações fundamentalistas tem como aparatos de manipulação social dois itens fundamentais: proteção divina e salvação divina. Com essa base metafísica a evangelização totalitária do conservadorismo se direciona para uma alma acuada pela culpa, por uma tão grande culpa. No entanto, mais pesa a imensa ignorância do que o fardo dos pecados. A garantia do abrigo e da remissão dos pecados é a moeda de troca para a servidão e para a militância religiosa. Quem pode mais do que Deus? O rebanho precisa do pastor e o pastor precisa bem muito mais das ovelhas, pois o curral é sua fonte de produtividade. O protocolo de burocratização das almas cativas é um empreendedorismo paradoxal, tem meios liberais de mercado e fins espirituais conservadores.

 

O mercantilismo religioso é uma arte. O encontro da política, da tecnologia e do fanatismo religioso tem mais poder do que o sangue de cristo, tem mais poder do que a fissura beligerante do átomo. Essa tendência dogmática do banditismo ecumênico tem até o dinamismo maligno de obscurecer as vertentes pregadoras que se fundamentam na dignidade, que trabalham para a transformação do ser humano, através do amor ao próximo e da responsabilização do próximo como sendo sua outra face. Em todas as partes do mundo, existem partes religiosas que não foram afetadas por essas facções terrivelmente desumanizadas e brutalmente milicianas. Nem todas as representatividades religiosas transformaram seus livros sagrados em livros contábeis, muito menos tiveram seus fiéis transformados em hordas.

 

A defesa da vida feita pelos grupelhos fanáticos que invadiram o hospital onde a menina de 10 anos passava por um aborto assistido é a prova cabível da involução do ser humano. Aliás, o bestialismo humano está presente em quase a totalidade desse episódio macabro da história recente da escória da sociedade brasileira, excetuando-se aqueles que estavam e estão ao lado dessa criança estuprada em série. Nem Goebles teria o sangue de barata para transformar essa tragédia social brasileira em ato político. Nem mesmo o mais habilidoso dos camelôs da bíblia encontraria justificativa teológica para dar continuidade existencial dessa tortura suprema. De fato, a perfeição divina, como é pregada, precisa de um arcabouço teológico gigantesco para se justificar dentre o lixo humano contemporâneo.

 

Quando os discursos criminosamente organizados ocultam o estuprador e tiram de cena o protagonismo do que de pior existe no ser humano, fomentando a sedimentação perene do machismo, anulando categoricamente a mulher e sua independência de ser mulher, temos certeza que o inferno foi transubstanciado de sua condição mítica para os confins da cadeia de esgoto que habita boa parte da sociedade brasileira. É muito diabólico evidenciar um crime de aborto, quando na verdade o crime é de estupro. O resultado dessa propaganda política é a revelação da natureza desumana de quem defende o projeto político em curso. Não é possível acreditar que qualquer protesto contra essa manifestação decadente da existência humana possa resultar em um retorno da dignidade, da cidadania, e dos direitos humanos. O exorcismo dessa legião necessita muito mais do que notas de repúdio. 

Material publicado na edição desta sexta-feira 21/8/2020 na edição de número 21 do jornal Leias Sempre.