Íris Tavares (Kariri)
Historiadora, escritora, mestre em políticas públicas e gestão na educação superior. Feminista, ecossocialista, defensora dos direitos humanos e descendente dos povos Kariri da Chapada do Araripe.
A cidade de Vitória é a capital do estado do Espirito Santo no sudeste do Brasil. É o palco mais recente de um episódio criminoso que se repete em todos os demais estados brasileiros. O ninho da violência que aniquila e sequestra o direito dos seres humanos de exercerem a sua infância, etapa singular da vida que necessita de apoio, formação e o realce do lúdico a incorporar a inocência, a pureza do sagrado que reside nos recantos mais profundos da alma de um ser vivo. Esse monstro vive no seio da família, à espreita. Uma ameaça constante e transgressora que apunhala o ventre e dilacera a alma de uma menina.
Dessa
feita uma menina de 10 (dez) anos de idade, assolapada pela brutalidade
familiar que covardemente lhe abateu desde os seus primeiros 6 anos de vida.
Quantas meninas guardam um segredo tão terrível como esse? Quantas meninas
cresceram a sombra da mentira e da usurpação dos seus direitos? Quantas meninas
condenadas a satisfazerem os vícios mais torpes e cruéis daqueles que bebem o
sangue do justo? O crime monstruoso está para além da pandemia, do isolamento
social, do flagelo intransponível que nos coloca no meio de uma barbárie. Na
sequência nos deparamos com uma horda própria desse tempo de autoritarismo, do
modelo que se faz em círculo, roda do caos, cuja as manifestações de falas
sinalizam claramente o discurso ideológico pintado no horror da ignorância, da negação
de direitos objeto de estudo de Hanna Arendt, que nos ajuda compreender o
fenômeno da crueldade que serve de alimento para uma sociedade adoecida. A
banalidade do mal. “A essência dos direitos humanos é o direito a ter
direitos”. E observa que a ideologia não segue a racionalidade e o discurso
ideológico está fechado em si. Toda ideologia luta contra o mal maior, “o mal
absoluto”. “A violência não reconstrói delicadamente o poder. Paralisa-o e o
aniquila”.
A nossa menina do Espirito
Santo teve a sua infância sequestrada e virou um pedaço de carne para saciar a
fome insana do machismo que predomina as relações de poder, o subsolo de uma cultura
forjada no patriarcado, na dominação de uma geração sobre a outra. Na beira de
um fosso reside a condição humana. Que tempo é esse?
Penso que não é religioso
ignorar o sofrimento. A caminhada de Cristo até o calvário serviu como um
baquete condimentado de sal e terra entranhados na carne viva, sangria a
escorrer no caminho da crucificação. Não é religioso ignorar o sofrimento e a
crucificação de uma menina de 10 (dez) anos. O crime está em curso. O
estuprador, o pedófilo e o incesto de nada valem nessa guerra ideológica, onde
as falas proclamam que o corpo não nos pertence, porque a vida pertence a Deus.
Menina e menino são semelhanças do criador. Não é? Quem consegue escapar do estupro?
O tempo é de negação da infância, da ciência, da política, da filosofia. O chão
da barbárie é uma esteira por onde avança a máquina de moer gente, ela é voraz
e enquanto paramos para fazer essa leitura, meninas e meninos do Oiapoque ao Chuí
estão sendo molestados e suas vidas tombam na vala comum. Por isso esse grito
pelas nossas crianças. As vidas das crianças importam. Vidas infantes importam.