O DEFRUXO-17 EM MATOZINHO
J. Flávio Vieira I Médico e escritor
As notícias em Matozinho nunca
chegavam a vista, sempre em módicas prestações mensais. Isolada do mundo, a
vila necessitava das alvíssaras , caindo pingo a pingo, como numa destalaria,
dos tropeiros , dos galegos , dos mascates. Nos tempos da peste, ainda não
tinham chegado novidades de rádio, nem de telégrafo. O suicídio de Getúlio só
foi pranteado uns cinco anos depois do ocorrido; a derrota do Brasil, na Copa de 50, nem causou
sobrosso: aportou com a notícia da vitória de 1958, aí pela metade da década de
sessenta. Os mascates, assim, carregavam uma dupla função. Sortiam o comércio local e, junto, num jornalismo
pronto e informal, abasteciam de novidades
, Matozinho. Claro que, como bons profissionais de mídia, os galegos carregavam
nas tintas, temperavam as estórias com pitadas de exagero e surrealismo, tornando-as mais
palatáveis e sensacionais.
Assim, na vila, a
praga chegou primeiro que a notícia e pegou todo mundo meio de contrapé.
Acredita-se que, por ironia, teria sido Afonso, também conhecido como Fon-Fon
de Sumé, o caso zero de Matozinho. Chegara na noite anterior, já meio capiongo
e despombalizado , tangendo os burros
carregados de quinquilharias. Hospedou-se , como sempre o fazia, na Pensão de
D. Quinô. Queixou-se de uma quebradeira no corpo, de uma tosse de cachorro
entalado e de um estalecido que o vinha
incomodando há uns três dias, desde a saída de Serrinha dos Nicodemos. O certo
é que naquela noite Fon-fon tomou apenas um caldo de mocotó. Conforme o
depoimento de D. Quinô: ele dormiu como um anjo e acordou também como um.
Quando abriu os olhos tava morto!
A partir daquele dia,
os casos começaram a pipocar em Matozinho. O marido de D. Quinô seguiu na mesma
caravana de Fon-Fon, uma semana depois.
Pe Arcelino caiu doente e esteve com a jumenta amarrada na porta, com a bagagem
pronta, por mais de uma quinzena. Com uma semana já se contavam mais de
cinquenta matozenses enfiados nas redes e cerca de mais de quinze que tinham
ensebado o capim.
As boticas da cidade
não davam vencimento aos atendimentos, as rezadeiras estavam roucas de puxar
orações. Janjão da Botica tinha feito já calo nos dedos de tanto aplicar
sanguessuga na clientela, para depurar o sangue dos enfermos. E quem matou a
charada, foi Juvenal Tiburtino, um outro mascate, amigo de Fon-Fon, vindo da
capital que estava empestada daquela mesma maleita: aquilo era uma tal de
Carona, uma praga das estranjas e que estava matando gente, como gôgo em
poleiro de galinha. Juvenal teve apenas o tempo de dizer aquilo e já dá meia
volta, às carreiras: Vôte! Pernas pra que vos quero ! O diabo é quem fica aqui
!
Matozinho entrou em
pânico. Como combater um inimigo que ninguém via, nem conhecia ? Bicho
cabuloso, esquisito que vivia mais escondido que quenga de beato. Quem tinha alguma condição seguiu no rastro de
Juvenal. Uns para fazendas, outros para outras paragens. As rodinhas de praça
desapareceram. As pessoas se enfiaram dentro de casa e olhavam o mundo pelo
buraco da fechadura. O comércio fechou, a igreja bateu as portas, a escolinha
de D. Escolástica dispensou os alunos. Só ficaram ainda com algum movimento as
atividades mais que essenciais: as bodegas, as boticas, os bares , o cabaré. E, a mais essencial de
todas, a “Funerária Dessapramelhor” de
Sebasto Rasga-Mortalha que, com o passar dos dias, começou a ter dificuldades
de manter o estoque, devido à procura
excessiva dos envelopes necessários à postagem derradeira.
O prefeito Sinderval
Bandalheira, diante da doideira do povo, fez vista grossa. Começou por designar
a epidemia de Defruxo-17, coincidentemente o 17 era o número eleitoral do
partido adversário de Sinderval. Avisou
que aquilo era um estalecido veio safado. Que ninguém fizesse corpo mole , fosse trabalhar, deixasse de covardia.
Tinha falado com um cientista de
Bertioga, cabra levantador de espinhela caída, tirador de quebranto e
olho-gordo e até desengasgador de
espinha de peixe. Ele dera a receita
tiro-e-queda para o Defruxo-17: chá de jalapa três vezes ao dia. O chá
reverberou nas orelhas de Janjão da Botica, como música de rabeca. Ele tinha um
estoque imenso , comprado , vejam só vocês, do maior fornecedor local da
raizada: a fazenda de um sujeito chamado Sinderval. Coincidências acontecem
nessa vida !
O que parecia um
simples surto, no entanto, começou a se alastrar. O prefeito viu-se pressionado
de vários lados, como pé de milho em
roça com maracanã. Precisou distribuir, com enorme contragosto, o dinheiro público, que ele tinha como seu,
sob pressão de uma horda de famintos que ameaçava saquear a cidade. Uma cunhada
sua caiu doente, pegou uma tisga danada , um puxado infeliz e , empanturrada de
jalapa, fez o check-in com São Pedro em pouco dias. Sinderval resolveu, então,
dividir o ônus da calamidade e contratou um Secretário de Saúde. Janjão
imaginou que seria o candidato natural ao cargo. Qual não foi sua surpresa
quando viu a nomeação do Cabo Albertino, conhecido por todos como Cabo Tino,
para a função ! Como justificativa, Sinderval afirmou: aquilo era uma guerra e para tanto
convocara um general para comandar as tropas contra o inimigo feroz, o
Defruxo-17: Cabo Tino !
Defronte da
prefeitura, um Tino, investido em ares
bélicos, à Duque de Caxias, fez sua ordem do dia para uma plateia escassa de
funcionários:
--- Povo de
Matozinho! Estamos em guerra! Desde este momento tô fazendo campana! Este tá de
Defluxo vai ver com quantas tariscas se faz uma arapuca ! Defluxo! 17 é macaco ! Pois agora você vai enfrentar o
King Kong, seu filho de uma Ronca e Fuça ! Se aprepare ! Quem já foi domador de
circo, como eu, enfrentou manada de caititu
em carrasco, vai lá ter medo de um bicho véi miúdo e melenguento? !
Preparar, apontar, fogo !
E mostrando as mãos teatralmente, perorou:
--- Se eu te pego, Defruxo, com esses dez dedos
aqui , tu bota a língua de fora e chama mamãe !
Nos dias seguintes,
já cedinho, o agora marechal espalhou ,
pelas vielas de Matozinho, potes e jarras cheias de chá de jalapa e obrigava a
quem passasse na rua a tomar uma talagada. Quem se recusasse a tomar a
beberagem ia preso. Semanas depois, vindo do sitiozinho onde morava, a pé, deu
com uma raposa raivosa, na estrada, que
o atacou, sem piedade e o teria matado, não fosse a ajuda dos cachorros da
vizinhança.
No outro dia do
atentado, lanhado como se tivesse caído numa betoneira, estirado na cama,
coberto de gaze, só os olhos de fora, ouviu quando o soldado Jeremias ,que
quase tinha batido as botas, recentemente,
quando pegara o Defluxo, comentou com os
colegas na porta de casa:
--- Tarzan não
aguentou nem uma raposa vindo de proa
? Avali quando encontrar o 17, por aí ! Vai ficar mais rachado que salário de assessor parlamentar !